Letters in Store

Wednesday, November 23, 2005

Fado da vida....


10:12
Sentou-se. Cansada do mundo, clamava um minuto de pausa do lufa-lufa habitual (era engomadeira de dia, fadista à noite, no Bairro, e avó de sete petizes, cada um mais traquinas que o outro).
As pernas suplicavam um momento de repouso. Ninguém a incomodaria nem se importaria se ela se sentasse no banco, só por breves momentos e assim recuperasse o fôlego. (As compras da semana ainda iam a meio; faltava ir ao talho, à peixaria e farmácia.)
Lembrou-se do dia em que corria atrás do seus cinco filhos...tal como os seus netos, cada um pior que o outro. Amava-os a todos, apesar dos vasos, pratos, porcelanas e vidros partidos. Tudo era simples e honesto naquele tempo. Os netos, pensava, estão imersos numa apatia, entregues à televisão (já não se pode ver a novela em sossego...) ou àquilo que chamam de Playstation (mais estrangeirices...ao que chegámos hoje, senhores!)
Entre fôlegos, deixava escapar ocasionalmente um suspiro, aquele que libertava à noite, na cama, procurando trazer de novo à vida o dia em que casara e promessas fizera e tivera para toda uma vida. Os filhos cresceram, os netos apareceram em casa para o pequeno-almoço....e o prato vazio no jantar era o pão nosso de cada dia. Como a vida se alterara desde aquele juramento.
Contudo não se arrependera. O corpo que com ela dormia, partilhava risos e lágrimas, filhos e netos, e canções e refeições... e fados.
Era na música velada e triste, sozinha ou no restaurante, para os clientes e amigos de toda uma vida que libertava o sangue d'alma que lhe escorria pela voz. Sentia essa necessidade. Era o seu oxigénio. Cliché seria ficar em casa, a remendar meias, adormecer no sofá, a ver as novelas, ou perdida de sono, tentando completar as palavras cruzadas do jornal. (Ainda tenho que passar pela banca do Sr. Chico. Falta comprar o jornal de hoje.)
10:13
Suspirou.
Perdida nos afazeres não reparou no tempo que velozmente passava. Amanhã seria Domingo. Descanso merecido. (Mentira....o almoço por fazer, o marido que dorme a sesta à tarde quando temos que visitar o António e os miúdos. Mais o lanche ainda e regressar a casa para cozinhar o jantar - desta vez será só sopa, que não tenho vontade para mais nada - e depois passar a ferro as camisas do homem...descanso...isso era dantes, nos meus vinte anos, quando ia com a Josefa e Ilda à aldeia, comprar caramelos. E os balaricos das aldeias, no Verão...que saudades, que bons tempos.......................Que vida...)
...
10:14
O corpo pediu-lhe que fechasse os olhos e suspirasse só mais uma vez antes de regressar à rotina. A ambulância chegaria mais tarde para vir buscá-la, sem sopro. Afinal, na lufa-lufa do dia-a-dia, quem daria conta, quem se importaria? Era um corpo, era uma desconhecida. Mas escondia dentro dela, gravada no peito, o fado da vida.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home