Letters in Store

Thursday, February 28, 2008

O Beijo das Oliveiras



Ester sabia que aquela manhã era diferente das outras. Levantou-se mais cedo do que o habitual, ainda a tempo de ver os primeiros raios do sol do dia, que acariciavam o Tejo. A vista privilegiada sobre o rio fora para ela motivo de encantos, namoros, casos e ciúmes. No trabalho todos admiravam o seu "workaholismo" , mas mais ainda se surpreendiam com o seu sorriso, fruto de lábios que era motivo de conversa dos homens que com ela trabalhavam e também de algumas mulheres que secretamente a desejavam. E ela não era alheia a estes enredos, pelo contrário, apreciava-os e desejava sempre acrescentar um novo capítulo, mais uma escapatória para a monotonia do dia-a-dia, do que propriamente a perfídia de querer subjugar os outros.


Atraía-a esta sensação de protagonismo e poder, embora não era algo com que lidasse brandamente. A responsabilidade não assentava em quem, com um palmo de cara, sorria para o patrão e conseguia o seu aumento. Não, Ester era mais do que isto, porém, encantava-a uma esplanada, um café e um rapaz bonito, alguém para seduzi-la, alguém a quem pudesse puerilmente sorrir, e sorrindo convidá-lo para o seu apartamento com a já referida vista beneficiada para o Tejo.


Beneficiava de beleza e simpatia esta Eva (figura primordial a quem chamava Tia), sedutora por natureza, não porque assim se fizera, mas antes porque, para bem ou mal dos seus (tão poucos) pecados, assim nascera. Sabia que podia fazer parar o trânsito, e já nem ligava aos constantes e quotidianos piropos. Mas no fundo, o seu coração de criança, sorria e ria e palpitava por se sentir a princesa que vai na rua.


Este era, pois, um desses dias: os assobios na rua, os olhares dos transeuntes, os comentários dos colegas e o café na esplanada bem acompanhada até que o sol se despedisse e esperasse, também ele, por vê-la sorrir-lhe na manhã seguinte.


Apesar do encanto e do prazer da companhia, não o convidou para casa naquele dia. A razão não o sabia completamente. Mas sentia o completo desejo de voltar para casa. E assim o fez.


Já noite, largou a pasta no sofá, descalçou-se no corredor enquanto corria para a casa-de-banho e lá, por fim, tirou o vestido, decotado e reluzente, como prolongamento do seu sorriso. E nua, pôs o banho a correr, era isto, pois, porque ansiara todo aquele dia.
Porém, ouvindo uma música antiga que ecoava na sua mente, Ester deixou cair o que soube ser uma máscara e via que esta escorria com a água, numa irónica sinfonia. Maravilhada, saiu da banheira e com cuidado para não tropeçar, levantou-se e contemplou longamente a mulher que agora via no espelho. Beijou-a, apesar da superfície fria, e sentiu a inevitável traição que o Tempo assim determinava: chegara o tempo da criança repousar. E como algo que sempre negara, aquele sorriso não voltaria a ser o mesmo. Antes, era agora o sorriso de uma mulher.


E toda uma vida de (des)enganos assim principiara...

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