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Monday, April 10, 2006

Entrega
Matou o poema naquela noite. Ou melhor, descobriu com a simplicidade de uma criança que o poema se deixara morrer no momento em que fora lido.
Era já escuro quando abrira aquele livro, álbum de fotos e textos que a sua memória mantinha aberta, como ferida que recusava sarar. "A dor necessária," - dizia aos amigos e família.
Evitava as despedidas desde que se vira sozinho. Preferia o "Até breve!", mesmo que isso significasse oito ou mais anos de ausência. Habituara-se a ver a ausência como parte da sua vivência, da sua totalidade, da sua incompletude nocturna, quando o coração se entregava à irredutível verdade que a cada dia negava com um sorriso. E era sempre sincero o sorriso.
Lavara o corpo demoradamente, recordando os serões de Verão, juntos, cúmplices, apaixonados. Só o gato testemunhava a confecção do jantar, para um corpo, apenas, e ocasionalmente o ligeiro travo a água e sal, fruto da saudade agrilhoada, solta a leves espaços. Escondida.
Já noite alta senta-se no cadeirão velho do avô, à lareira apagada, escura, companhia doutras noites, em que as paredes se enchiam das vozes que percorriam a casa e rindo, caminhavam para o quarto.
Abriu o livro, pensando no corpo imaginado, reconstruído, amado, odiado, desejado. Releu o poema que ambos compuseram, à luz de jantares de velas. Sonhos, projectos inúteis que não regressam mais.
A voz falhou-lhe quando leu poema para a sala recordar-se daquela noite em que a poesia transpunha o papel e era sangue e olhar.
Rasgou a folha e entregá-la-ia ao oceano, o deus das palavras menores, que não se completam à noite. Foi nesse instante que poema sorriu para o corpo, deixou-se rasgar e, no dia seguinte, se entregou ao mar de emoções e sal que o criara. Eis que a poesia regressara a casa. E um sol de Verão nasceu sobre aquele quarto, aquela cama, aquele corpo, aquele ser amado.

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