Letters in Store

Thursday, July 06, 2006

Tale of the sea


A cabana na praia exalava a esteira de vime naquela tarde soalheira. A maresia curava a maleita da cidade, santuário da depressão e da falta do tempo. Virava o corpo do sol que começava a queimar, como o álcool da noite anterior. Resquício de liberdade, pensava, atava à alma a garrafa do líquido precioso, qual hábito, qual apêndice corporal, qual orgão vital. Era ele próprio.
O rumor das ondas não ouvia há muito. Esquecera-o na juventude perdida, aquela em que acreditava nas pessoas, amigos e namoradas, mas perdia-se no labirinto das palavras, as suas, e acabava só...perdão...acompanhado da sua amante alcoolizante.
Fazia-se o pôr-do-sol a caminho de Oeste quando ousou levantar a pálpebra esquerda...a luz ainda feria o olhar...e relegava para a Morte a praia, a cabana, o mar....altares de Beleza que tantas vezes cantara...e renegara, por fim.
Era Poeta, profeta das palavras. Contudo não profetizara o desfecho da sua vida...aquela em que, arrependido amaria o mar e ajoelhar-se-ia em contemplação, tomaria o sol na palma da mão e, beijando-o, oraria pela primeira vez em muitos anos. Por último, no sopro final, juntaria o seu respiro à maresia, como voz do Canto que só alguns ouvem, aqueles que vêem a Beleza na i(m)perfeição e simplicidade do mundo. E criaria assim o poema. Humano, como se quer hoje em dia.
Pôs-se o sol. Ergueu-se da esteira e fechou a cabana. Caminhou na direcção oposta ao mar e uma garrafa meio cheia de álcool ali permaneceu.
Fez-se o milagre da poesia.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home