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Monday, January 08, 2007

Alma

"Nao confies a alma a quem não a quer receber," ela pensou. "Será um inimigo terrível, daqueles que minam a alma com palavras de areia e sonhos de nevoeiro."

Conhece-lo bem, esse inimigo, esse silêncio que escuta à noite deitada na cama, antes de adormecer. O calafrio que percorre a espinha não esconde a sua presença e ela sabe-o bem. O temor é companhia e certeza da incerteza que invade o seu olhar expectante, ilusório, sereno.

Há muito que ela acolheu este destino, esta palavra cuspida do ventre de si mesma, qual filho pródigo. Não precisava de ver para acreditar na solidão. Sabia-se só e só ficara desde o dia em que decidira amar. Dera-lhe o coração irrelutantemente, sem pensar nos dias em que vive olhando aquele prato vazio à sua frente, do outro lado da mesa. Fechando os olhos imagina o idílio, o amante e marido que não tem. Vive deste modo a sua paixão pueril, dilacerante, intensa, quimérica. E verdade seria não fosse a metade do lençol frio a cada noite. Deseja na vida aquilo porque sempre imaginara: calar este carrasco nocturno, que a afaga a cada respiro e a toca com volúpia, e rindo para si, criar a vida que só em mente é deusa e senhora do seu futuro.

.....
Chegara tarde como sempre. O jantar espera-o no micro-ondas. À média luz de um candeeiro de cozinha jantava no silêncio da casa. Cheirava à outra mulher e mais uma vez disfarçaria com um duche rápido aquele odor de juventude. "Saberia ela? A roupa não esconde o que o corpo disfarça," concluiu.
Repetiu mais uma vez o ritual. Baptizando-se na água meditou na mulher que do outro lado da parede o esperava, adormecida. Lembrou vagamente os passeios, os olhares e sorrisos cúmplices dos tempos de namoro. Mas o carrasco deste amor lentamente marcara presença a cada ruga e cabelo branco, e os sorrisos cederam ante o peso do silêncio. Até que um corpo novo aparecera, fascinado por aquele olhar de meia-idade.
.....
Deitou-se naquela metade da cama fria. Nem se virou para vê-la sequer. E deixou-se adormecer.
Antes mesmo de sonhar lembrou-se de uma voz que cantava raiada em lágrimas. Fora naquele momento que soubera: era ela quem queria por companheira. Acordou sorrindo e quebrando um peso de anos, voltou-se na cama para de novo admirar a sua, ainda, mulher. Porém, aquela metade da cama estava vazia, à excepção de um sobrescrito na almofada.
Acendeu o candeeiro e abriu o envelope, revelando o bilhete:
"Quando se ama alguém tão profundamente sufoca-se o amor. Deixo por isso a cama respirar e solto a alma pela pressão aplicada."

2 Comments:

  • "Nao confies a alma a quem não a quer receber"... Escreve para quem quer ler! ;o) É dares bom tempo ao tempo bom!!!! Catarina

    By Anonymous Anonymous, at 3:59 PM  

  • "Nao confies a alma a quem não a quer receber"... Lição para a vida :o) Catarina

    By Anonymous Anonymous, at 6:58 AM  

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