Letters in Store

Sunday, April 01, 2007

A Ruga



Desenhara-se uma ruga naquele rosto. Em vez de tomá-la como benção da sua já preenchida vida, fora sinal de maldição.
Percorria longamente as ruas de Lisboa, ao frio, fumando o seu cigarro, meditando um novo livro, aliás, mais um de tantos projectos que projectara para a sua carreira literária, mas que nunca veriam sequer a cor da tinta no papel.

Começou a fumar já tarde, plenamente consciente de que final reservava prematuramente para si próprio, mas pouco lhe importava, pois algo no coração traiçoeiro lhe confiava uma certeza amarga de surpreendente desfecho.

Tudo era para ele motivo de linhas na sua mente. Tinha um caderninho de apontamentos, um moleskine preto, e nele guardava lembretes, multas, queixas, listas de compras, moradas, viagens, pessoas, imagens e conceitos para desenvolver...mas estes últimos, como os livros, seriam folhas de mente para quem mente ao coração.

Havia algo na Natureza que o apaixonava para lá do humano: quer fosse o sol que deslizava no céu, afundando-se no Tejo, quer fossem os bandos de aves que sobrevoavam Lisboa ao crepúsculo e a ela contavam trovas e memórias de fados por cantar. À maneira desta toada, escrevera em tempos uma lição de vida, mas não ousaria torná-la canção, pois queria ensurdecer uma melodia triste que persistia algures no seu peito e que nela fizera casa.

Não esqueceria o dia em que ouvira aquela melodia. Se pudesse, arrancá-lo-ia do peito, tal fora a devastação que criara no seu espírito. Quebrou-o, deteve-o, dominou-o. Foi nesse dia, ao assistir àquele concerto, àquela voz, àquele...lamento, que nascera a sua ruga. A tristeza, a paixão fervorosa no dedilhar do acordeão fizera-o contorcer a alma e exorcisar aquela marca na pele. Era o mais belo poema que ouvira...a mais bela voz, o verbo encarnado...e no entanto, não era ele o seu deus. E tal facto consumi-lo-ia.
Afundado na mediocridade, voltou para casa. Às escuras chegou à casa-de-banho e acendeu a luz do espelho. Na meia penumbra visionou o homem diante de si e amaldiçou a ruga que contemplava pela primeira vez e, como se fruto de um castigo de Cronos, multiplicavam-se cabelos brancos, confirmando o fardo que ainda lhe restava penar. Apressou-se para a sala onde o caos de papéis e livros deixava entrever um processo criativo, porém, incompleto.
Acometido de raiva e de inveja ao lembrar-se daquela perfeição ouvida, atirou com livros e papéis para o chão. Rasgou outros tantos. Queimou ainda alguns. A cobiça levara a melhor naquele acto. Naquela noite, entretanto, fora o tempo o grande vencedor daquele corpo. A mente rendera-se ao turbilhão e enfraquecia-o visivelmente, rumo ao desfecho já esperado.

Escrevera nervosamente num papel já de si carregado de carvão: "Se morro agora, seja pela vida que transborda em mim. Se amanhã o sol fizer folga, que melhor elogio receberia, a não ser pelo toque da tua boca na minha."

E deixou-se adormecer, embalado por aqueles lábios que uma ruga trouxera à memória.