Letters in Store

Thursday, September 06, 2007

Sem nome





Fechou a porta atrás de si. Noutras circunstâncias teria disparado para o conforto do sofá, uma revista e a companhia da televisão ligada, porém, naquele dia, aninhara-se na porta, sem se mover, pensando, talvez, que se retrocedesse este passo tudo voltaria a ser como dantes. Mas assim não era.


"O que fiz? Como pôde isto acontecer-me?", repetia vezes sem conta na sua cabeça. Relembrou, desnovelou, destrinçou todos os factos e pormenores que levaram àquele sentimento de espanto, medo e dúvida. Ergueu a cabeça cabisbaixa do peso que as rugas no seu rosto produziram nesta auto-análise. Da cabeça seguiu-se o restante corpo e, com renovada energia, dirigiu-se para a cozinha. Analisou aqueles recantos com um olhar particularmente inspeccionante, como se aquela não fosse a sua cozinha. O lava-loiças esperava por ela, com dois dias de atraso, essas 48 horas em que contara à amiga, mas que embora não o fosse, era o fim do mundo...pelo menos o seu mundo. Destruído, posto em causa, e inevitavalmente condenado ao fim. Não o queria, não o desejava assim, não daquele modo, este acontecimento que a levava a perder o controlo sobre a sua vida, sobre si mesma - e como ela sempre foi minuciosa com as suas coisas e ciente do que queria...e não queria.


Não...não era isto que a reduziria a uma simples condição de actriz secundária na peça mais importante para si. Queira mais, queria acabar com esta angústia de vez e gradualmente revelou-se toda a raiva e frustração que acumulara desde que o soubera. Olhou para a loiça e desfê-la em mil pedaços, como o teria feito a um bilhete de desculpas do seu ex-namorado. Deitou tachos e talheres para o chão, derrubou cadeiras e a mesa, e atirou com algumas gavetas pelo ar até se destruirem no chão de metais e loiças.


Chorou. Não porque as suas mãos ardiam pelo sangue que escorria vigorosamente, mas pelo poder que exercia sobre ela a notícia de que o seu prazo de validade estava marcado. Acabara-se a juventude e a liberdade que dela gozava e gozaria ainda por mais alguns anos, se assim fosse possível. Contudo, este inevitável arrancá-la-ia à sua vidinha de "petit coquote" de um pequeno círculo de amigos quarentões com que privava pelo simples prazer de se sentir mais culta do que as jovens adultas da sua geração.


Não lhe daria um nome. Não queria saber desta morte forçada e precocemente martelada no seu peito. Preferia manter um silêncio sobre aquilo que se passava e ingenuamente esquivando-se e prolongando de forma inútil o dia em que tudo mudaria e deixaria de ser quem sempre foi.


Projectos ignorava. Desejos não tinha, ou secretamente escondia, não fosse o dia ouvir e arrancá-la a ela mais cedo do que pretendia. Não contaria a ninguém, já que a reacção da amiga em vez de conforto trouxera-lhe a certeza do fim. Por emquanto viveria como se nada fosse, alheia à inversão de pólos que se produzia dentro da sua própria casa.


A sua vida dissimulada, encenada e quimérica diminuía à medida que outra reclamava o seu justo lugar. E dentro dela crescia, escutava, fortalecia... esperava.


Seria mãe dentro de 7 meses. E pela primeira vez, quando colocou dentro do seu coração esta palavra, uma pequena semente germinava, lembrança dos sonhos de uma criança que a vida adulta escondeu.