Letters in Store

Wednesday, July 26, 2006

Instantes...

Sufocava o sentimento. Asfixiava o branco das paredes que o cercavam. Era alta a noite em que percorria os campos da memória em sua busca. Porém, permanecia sozinho à sombra do carvalho. Sabia que nem sempre fora assim. Mas a idade levara a melhor e já nem pentear-se conseguia sozinho. Era, ao invés, a D. Catarina, nos seus já 27 anos de serviço que se encarregava das suas dores, da sua higiene, da sua vida. Da dele e de tantos outros.

Partilhava aquele quarto com a D. Raquel, nome raro para uma geração de Marias neste país. Era chata, falava alto, sem ligar a horas ou contextos, e espelhava no olhar um rumo sem destino - "perdera a bússula da cachola"-, dizia enfaticamente o Sr. Manuel, amigo das cartas e do xadrez naquelas tardes de Verão, em que o sol não dá tréguas, e nem a sombra das árvores acalma o fogo nas pernas...uma luta que travava já desde os sessentas...

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Naquela noite estavas linda, olhando o jardim, a aldeia, o mar, pela janela. Desvelavas o corpo por entre a roupa que trazias vestida, mas que cumplicemente conhecia tão bem...dos anos que percorremos juntos, do leito que partilhámos e nele criámos a nossa história em conjunto. Vem descansar junto a mim, só mais esta noite, só mais este momento...que tanto desejei que perdurasse para sempre, mas irónico é que o meu pior inimigo seja eu próprio...pois o corpo não obedece, nem sequer a memória...o maior tesouro que alguém poderia ter na vida.

Nem olhaste, nem sequer percebeste quando, com grande esforço, me arrastei para a borda da cama onde te encontravas sentada ao lado, na cadeira. A lua reflectia uma palidez que concorria com a da tua pele...em tempos tão morena, que apaixonadamente beijara. O teu odor disfarçou-se com o tempo, mas só eu to conheço bem...e apenas a mim me importa. Antes que sejamos estranhos outra vez, Raquel, deixa tocar-te a face e levar-te à praia da nossa vida, aquela em que te pedi em casamento, beijei ternamente e levámos os nossos quatro filhos...e pela última vez nos lembrámos o quanto éramos um para o outro. Quem sabe, companheira, não seja esta noite uma prenda...o tesouro que almejamos a cada dia em que morremos mais um pouco...e a vida que caminhámos seja, por instantes, continuada.

Thursday, July 06, 2006

Tale of the sea


A cabana na praia exalava a esteira de vime naquela tarde soalheira. A maresia curava a maleita da cidade, santuário da depressão e da falta do tempo. Virava o corpo do sol que começava a queimar, como o álcool da noite anterior. Resquício de liberdade, pensava, atava à alma a garrafa do líquido precioso, qual hábito, qual apêndice corporal, qual orgão vital. Era ele próprio.
O rumor das ondas não ouvia há muito. Esquecera-o na juventude perdida, aquela em que acreditava nas pessoas, amigos e namoradas, mas perdia-se no labirinto das palavras, as suas, e acabava só...perdão...acompanhado da sua amante alcoolizante.
Fazia-se o pôr-do-sol a caminho de Oeste quando ousou levantar a pálpebra esquerda...a luz ainda feria o olhar...e relegava para a Morte a praia, a cabana, o mar....altares de Beleza que tantas vezes cantara...e renegara, por fim.
Era Poeta, profeta das palavras. Contudo não profetizara o desfecho da sua vida...aquela em que, arrependido amaria o mar e ajoelhar-se-ia em contemplação, tomaria o sol na palma da mão e, beijando-o, oraria pela primeira vez em muitos anos. Por último, no sopro final, juntaria o seu respiro à maresia, como voz do Canto que só alguns ouvem, aqueles que vêem a Beleza na i(m)perfeição e simplicidade do mundo. E criaria assim o poema. Humano, como se quer hoje em dia.
Pôs-se o sol. Ergueu-se da esteira e fechou a cabana. Caminhou na direcção oposta ao mar e uma garrafa meio cheia de álcool ali permaneceu.
Fez-se o milagre da poesia.