Letters in Store

Sunday, September 17, 2006


Mondscheinsonate

Amava aquela flor no lago. Lembrava-lhe a cor de uns olhos no Verão, a traços nublado, turvado pelas nuvens, da chuva que ocasionalmente teimava aparecer pela noite, já alta.

Só ela se apercebia do quanto lhe era vital esta flor. Mantê-la-ia sã durante as provações...seria a confessora da madrugada, cuja testemunha, a lua, seria ao mesmo tempo juíza. Como sacerdotisa da lua, investiu-se deste cargo e tomaria como missão a protecção daquela planta, daquela flor naquele reino de água, místico das sombras, altar dos desejos nocturnos.

Era belo o seu sonho. Queria-o realizado. Mas o tempo passava e nada contemplava o seu desfecho. Religiosamente viria orar para o lago. E como sinal dos deuses, pensava, veria o desabrochar daquela flor como a tão esperada resposta ao peso no peito, que apertava o ar e roubava deste bem precioso.

Sentava-se por vezes a escrever num pequeno caderno que o pai lhe oferecera. Já nas últimas páginas, desejava chegar à última com a alegria da resposta da Lua, que ora a iluminava, ora minguava e desaparecia, como que meditando sobre o seu desejo.

Viajava para lá daquele lago, daquela flor. Imaginava palácios, templos, pessoas, mundos. Ouvia risos e rumores, escutava oceanos e sentia odores e perfumes do Oriente. E tudo vivia com intensidade pueril, inocentemente acumulada nestas eternas noites em que queria ser o mundo e mundo seria não fosse o peso nos seus pés, que a atavam àquele lago. E assim crendo crescia em sabedoria e harmonia.

Na noite da última página, prostrou-se junto ao lago. Inspirando longamente, nomeou-se Musa do Lago e começou a escrever as últimas palavras naquele caderno, tantas vezes folheado.

Olhou para a juíza que plenamente iluminava aquele altar. Olhando a flor que secava, ficaria estéril esta magia aquática. Suspirando, fechou os olhos e imaginou um abraço, um corpo, um sorriso. E apercebeu-se que dentro de si desabrochava aquela mesma flor.
Era o milagre, a prece lunar realizada. Eis que a criança apaixonada dava, assim, lugar à mulher amada, que sorria.

Sunday, September 03, 2006

Eyes on hands

Não se amavam naquele instante. Para ambos, o Amor era algo tão vago e impreciso como o crepúsculo da aurora. Se um aproximava o toque, o outro divagava o olhar ou se um arriscava contemplar a pele do outro, logo esse recolhia o seu toque.

Não se encontravam em público nem em privado. Deixara de fazer sentido. Tornaram-se mundanos, assim pensavam, e nada justificava a permanência naquele enlace social. Para quê ou porquê persistir na encenação?

À noite, em segredo, meditavam nestes sentimentos ou na ausência deles um pelo outro. Cada um revolvia no seu mundo procurando alguma resposta, alguma justificação para ficar...ou, a cada vez maiores espaços de tempo, a divisar um plano que reclamasse por direito o afastamento. Mas o silêncio era para eles o engenho do plano ou a angústia de algo que não sabiam definir.

Por coincidência, alguns diriam, resolveram a mesma solução para o problema no mesmo dia. Não faria sentido continuar a acreditar em mãos que lavravam uma pele que não as queria, nem tão pouco pousar o olhar numa mão que calava os gestos, por cortesia.

Acordaram sempre em tudo, divergindo apenas num ponto. Um desejava do outro o calor da mão a cada gesto. O outro, o pulsar do olhar a cada respiro...Naquela noite em que decidiram revelar o fim ao outro, não souberam colocar em prática as suas decisões. Por isso, cada um escrevera uma carta. Finda a ceia, apresentaram-na ao outro. Um lera-a de uma assentada, o outro soube o seu conteúdo pela forma negligente em que esta lhe fora ofertada. Quiseram despedir-se, pelo menos, mas esta já fora feita há tanto tempo. E nisto deu lugar o lamento, a toada lenta e magoada do inevitável precípicio em que caíram.

Naquele instante perceberam por fim que, quando o olhar se turva na água e a mão seca o seu toque, porque lhes falta algo, mostra-se o verdadeiro indefinível: o corpo que quer e anseia, porque é feito de gestos e olhares, e crendo nesta verdade descobre o quão vago e impreciso é o Amor e como só lhe bastava ter escutado o silêncio das mãos naquele mudo olhar...e como tudo seria diferente para aquele olhar pousado naquelas mãos.