Letters in Store

Sunday, August 27, 2006

Song of the Siren...


Cansou-se mais uma vez. Os ossos dos dedos acusavam uma misteriosa dor. Porém não havia mistério, e ele sabia-o. A letargia sucedia a torrentes de cansaço a cada noite. Pousara o caderno que o acompanhara tantos momentos e agora, naquele silêncio nocturno, uma sinfonia compunha de memórias e olhares. Falhara a sua missão: manter viva a recordação daquele caderno em tempos escrito e cuja vida votara a reconstruir. Mas o tempo fora implacável no seu juízo. Noite alta, descaía a cabeça até que o corpo cedesse, por fim, ao invitável cataclismo mental que ele próprio desejara, criara, inventara, para si. Ela não tornaria. E o cansaço repetia a sua cadência ímpar. Ouviu o vazio da última palavra da boca exaurida. E suspirou.
...
Como era bela pela madrugada. O sorriso escondia o segredo. O vestido assentava-lhe perfeito. A frescura da mão sobre a pele enfeitiçava os convivas. Era estrela desde a nascença, tudo alumiava ao seu redor. As palavras foram para ela e por ela criadas, alguém aventava. Ela, com o olhar semicerrado em provocação, concordava nessa verdade. O porte de senhora, misturado com a inocência jovial de uma criança, segredava a carícia oculta a cada respiro. O andar inseguro, a espaços, confirmava a segurança encantatória do poema que fora escrito para ela.
Esquecera-o, havia muitos anos que o conhecera. Não se havia apaixonado por nenhum outro, passado ou futuro, desde aquele presente em que tudo existia naquele amor vivido, aquele que preferira relegar para o segredo, para a verdade oculta que só ela sabia. E ele descobrira-a. Mas fora sol de pouca dura. Qual Medeia, enrodilhou em poemas as noites, o leito, os risos. E desaparecera. Encantou o cantor da palavra no momento em que o vira, descobrira nele o dom, mas pervertê-lo-ia, à guisa de medusa, e paralisá-lo-ia como veneno, aos poucos, dolorosamente, e calaria, assim, o seu segredo. Outro dia, quem sabe, encontraria outro dom igual ou ainda melhor.
...
Sabia-o morto há já muito tempo. Daí que a notícia da morte do poeta não fora novidade. Retirou-se por instantes da festa e subiu para o quarto. Fechou a porta e caminhou para o contador. Abriu com a chave aquela gaveta particular, só para ela, e tirou de lá um livro. Este estava completo. Folheara o último registo, o mais perfeito, dizia, e retirara da face o sorriso. Uma ruga nascera naquele rosto imaculado pelo tempo. E, sabendo-o, deixaria lá permanecer aquela marca. Aquela em que um amor verdadeiro não se esquece e fica idelével , para sempre ligado ao corpo. Fechou o livro, colocou-o de volta no contador e trancou a gaveta. Levantou-se, respirou fundo e olhando-se ao espelho colocou de novo a máscara. E partiu para a luz dos convidados que aguardavam aquela sereia...inevitável.

Thursday, August 17, 2006

Pondering...

Temo que a Beleza morreu. Há dias que percorre as ruas da amargura, em que, já ébrios, a deixámos um dia (ou noite, não sei), e não soubemos resgatá-la de lá. A quem atirar as culpas? A quem dizer, inequivocamente, que é o culpado pela perda, pelo silêncio, pelo incompasso da vida do dia-a-dia? A quem criticar pelos dias que queremos apagar das nossas vidas, ou, por inveja, desejaríamos a felicidade do vizinho, vencedor de um grande prémio ou promoção no trabalho e que, justa ou injustamente, queríamos nossa. Mas a vida não foi, não é assim.

Aguardamos todos os dias pela mudança. Pela calada da noite em que, já a casa adormecida, ornamentamos a alma para receber o perdão da amada, do amado, do Deus, do Universo, de nós próprios. E subsome o silêncio.

Vivemos o extâse do segundo, alienando o nosso ser do eu e dos outros, em busca do ordenado ao fim do mês para, de novo, outro ciclo recomeçar. Segundos seremos em pensar que somos primeiros ao alcançar as coisas que buscamos para o momento. E desse momento, após o comprazimento, perdura o silêncio.

Silêncio...é o deus das pequenas coisas. Aquelas que não escutamos à noite, enquanto o sono não vem. Ou mesmo prostrados diante de um pequeno altar no templo da Divindade, ou olhando o mar, ou o verde do campo. Ou o pôr do sol, ou ainda desabrochar da primeira flor ao fim da tarde.

Sim, morreu a Beleza. Porque a buscamos no cinzento das nossas vidas, esquecemos o paleta de cores que nos rodeia, seja o sorriso da avó ou o olhar do filho que estende os seus braços. Uma pausa te peço, coração, sustém este momento, já que o tempo não pára. Mas só neste momento em que medito, escreve, regista para o futuro o sonho que me deste da Beleza que há em ti. E em mim.
E a Beleza encontra, por momentos, uma saída daquela rua sombria...