Letters in Store

Wednesday, October 03, 2007

Reverie





Deixou-se embalar pelo seu contorno. Há muito que não sentia o recorte sedoso das curvas daquele corpo nem tão-pouco a pele que percorria tantos dos seus sonhos, o que lhe era agradável e sensual a cada toque.


Viajava quando, já dentro dela, lembrava as paisagens, pessoas e ruas que percorrera ao longo da sua vida, e como suspirava de alívio, em jeito pueril, por todas aquelas lembranças que ela lhe proporcionava. Ele contorcia a cara numa seriedade quase hostil, mas aquela adorada ria-se daquele seu franzir, o sobrolho témulo que ela comentava a cada troca de olhar...e cada vez ele sentia mais raros.





Era perigosa quando sorria para ele e bem o sabia: deitara-se em inúmeras camas, contemplara incontáveis luares e um sem-número de pores-do-sol. Amantes tinha muitos. Ele seria mais um entre toda uma legião. Não lhe reclamava qualquer lugar especial no seu coração. Ela tinha os seus próprios caprichos e humores e ele respeitara-os, não fosse ela afastá-lo sumariamente e apagá-lo da sua memória.


Memória...era todo um mundo dentro dela. Via tantas caras e suspiros, conhecia cada recanto de cada casa que compunha o seu mundo, absorvia os segredos e medos de tantos que por ela passaram e era impossível para ela conter um riso.


Acreditava no amanhã, momento em que o viajante seguinte partia e deixava a gratificação, que exigia, ou estaria a condená-lo à indiferença e recusar-lhe entrada.


Mas ele secretamente queria ser-lhe especial. Havia momentos a dois que lhe pareciam rotinas e duvidava se ela estaria cometida ao tempo que passava com ele. Era sempre um pequeno aperto que desde o início tentava ocultar, não fosse isso interpretado como fraqueza.


Sabia que não iria longe neste tango solitário, a dança em que a rosa na boca deixava cair as últimas pétalas. O fim sussurava e esperava à flor da pele o seu momento.


A inconstância e imprevisibilidade dela ditavam um sentimento que, não sendo amor (palavra que estabelecera como inexistente), seria um misto de carnalidade e comiseração com este ser algo, não estando.


Adorava aquele corpo. Isso ele sabia e por sabe-lo deixou-se deitar na sua cama mais uma vez. Aquela que, por ironia quase programada, seria a última; falha de um coração que o atraiçoara mais do que ela.


A cidade olhava-o estendido e sem vida no leito. A amante-assassina recusara-lhe o amor, mas agora, entregue a um silêncio inesperado, ofertara-lhe algo bem mais certo que esta incerteza: a memória dele no seu regaço.