Letters in Store

Monday, November 28, 2005

Ella

Repousa o corpo no sofá. Fora um dia cansativo. O chefe dera-lhe o sermão de uma hora sobre os "objectivos da empresa" e em como ela tem, ultimamente, feito uma prestação abaixo da média ao que era esperado.
Chorou na casa-de-banho, em silêncio. As colegas podiam ouvir. Não seria ela, com certeza, a dar parte fraca. Sempre fora uma lutadora. Sabia o que tinha a fazer e as lágrimas que lhe corriam do rosto seriam as últimas que verteria por causa deste trabalho. Um dia, sim, estaria a fazer aquilo com que sempre sonhara.
Em casa, tudo parecia diferente. As vozes do trabalho calavam-se no segundo em que entrava pela porta e era recebida pelo doce tinir do espanta-espíritos (uma prenda do João, o namorado que já não via há dez meses.)
Ligara a aparelhagem. Apetecia-lhe Jazz. Ouvir uma diva seduzia-a hoje, depois de tudo o que passara no emprego. As compras quase as esquecera dentro do carro. Voltar para ir buscá-las, ainda para mais ao frio e à chuva, que recomeçara ao final da tarde, não estava nos seus planos. Ligou o chuveiro, despiu-se e mergulhou no toque morno e calmante da água que, como sempre, nunca falhara na confidência dos seus segredos. Desta vez, calou-se. Por algum motivo, a água parecia ecoar as suas dúvidas. Preferiu o silêncio.
Mais tarde, preparara o jantar, só para ela. Não haveria convidados. Há muito que não recebia alguém. O trabalho consumira a sua energia.
Não acendera a televisão, a companheira do serão, silenciosa caixa de pandora e confessionário. Nela olhava, distante no pensamento, aguardando o corpo que queria naquela hora. Ele não dissera mais nada desde há uma semana. Não atendia, não respondia, não escrevia.sentia que algo se passava.
Preferiu, hoje, repousar a cabeça no sofá, fechar os olhos e percorrer imaginariamente com os lábios o rosto que queria ali. A imaginação e a paixão ao menos estavam vivas no seu corpo. Tudo o resto esperava, em letargia.
Acomodou o corpo à cama improvisada, esperando alguma nova, embalada pela voz da musa que adora.
Ainda hoje a admiro naquele sofá, sonhando. Ella, a quem ouvi a palavra música tocar as nossas mãos.



Sunday, November 27, 2005

Lux

Não sei o que tem de tão especial um sítio como estes.... o glamour/ décor? O som? As pessoas que o frequentam?
Seja como for, várias vezes não fui porque tenho amor ao dinheiro, outras porque não tinha pessoal para ir. As poucas vezes que realmente cheguei a ir (e conseguir lugar para estacionar, entenda-se), contam-se pelos dedos de uma mão.
Ontem estabeleci um novo recorde. O anterior pertencia ao Indochina (150 euros). O Lux ontem pediu-me 180 euros (antes tivesse cotão nos ouvidos!)...Como nunca apareci na televisão nem nas revistas cor-de-rosa, nem tenho um palminho da cara nem outros atributos físicos de busto, o processo "aleatório" de exclusão de clientes lá foi aplicado.
Viva a liberalização da indústria da noite! Nisto sim, haja glamour!

Saturday, November 26, 2005

Lisboa


Percorro a Baixa como ritual. Faz tempo que não percorria estas ruas.
Os vendedores de castanhas, quais fábricas, deixavam no ar a nuvem de cheiro a castanha. Outros, vendiam chapéus. Atomáticos, diziam eles. (Ao fim de três pressões do botão, automaticamente iria um chapéu para o lixo.) Os ilustradores junto ao arco da Rua Augusta não fizeram grande negócio. "Puta da chuva!", reclamavam, atribuindo à crise e ao tempo a razão dos seus males.
Pára. Arranca. Insultar. O trânsito em Lisboa é outra das prendas que a cidade tem para quem nela habita ou trabalha. Mas esta prenda não dura só no Natal. Horas dentro de um carro podem ser cansativas física e mentalmente...daí que ontem, no Largo Camões, ao esperar pelo semáforo, a fila de carros buzinantes, deixou perceber uma voz feminina que marcadamente dizia:"Anda lá com essa merda, foda-se!"
Isto sim, é Lisboa. Não vivemos só dos Santos Populares, mas da realidade diária daquilo que, ironicamente, já no carro, a caminho da 2a circular me deparei. Ao pensar no trânsico caótico e compacto, dizia para mim mesmo "Fogo, isto (o trânsito) é mesmo um..." (nisto olho pelo espelho retrovisor letras luminosas garrafais de um autocarro "CALVÁRIO"). Nada mais apropriado.
Sem dúvida, Lisboa, quem te ama passa por um Calvário diário. Mas olhar para ti em dia de Verão num miradouro e ver o rio que te beija, é que vejo bem a Paixão pelo Portugal que habitas e com a qual contagias quem te ama.

Friday, November 25, 2005

A porra do Inglês...



Acto 1

Ele sabia do seu Inglês. Nunca precisou de estudar muito. Ocasionalmente pegava nas folhas que a s'tora dava. Rasgadas pelo Fiúças, ou dobradas pelos cadernos ou borradas pela chuva. Uma merda. "Para quê aquilo? Como se nao bastasse ter que gramar as aulas e a s'tora..."

Nas aulas, a conversa do intervalo prolongava-se sempre na sala de aula. "Mas será que ela 'tá a gozar comigo? Fazer os T.P.C.? Vai mas é catar piolhos , ó velha!" A paciência para as aulas de 45 minutos era rara, melhor era não trazer nada, e falar com o pessoal. Os que valem a pena. "Cambada de betinhos, a lamber as botas da cota.Vão-se mas é todos f....!"

As notas era o que bastava. em casa era só o que importava saber. "Menos uma disciplina que preciso de estudar, porque sei que sou bom nesta merda! Ela que não venha com histórias nas aulas, Tiro positiva e ela não me pode tocar."

"Eu sou dono de mim mesmo. A vida é curta...nada de stresses....e ter que vir à escola pra me alterar os esquemas? Nada disso!"

Acto 2

Ele até que gostava do Inglês. A professora falou com o professor de inglês e ambos foram de acordo de que o Filipe pudesse assistir às aulas, apesar de não estar inscrito. Os gastos? Seriam suportados pelo professor e pela escola, a título individual.

A atenção e a participação até que nem eram as melhores. Preferia pensar nos toques na bola que o esperavam lá fora, no intervalo. "Hei-de mostrar ao Vitor e ao Miguel a nova finta que o meu irmão me ensinou.É muito fixe."

Ainda estava a aprender o B-A-Bá (a sua curta vida tinha já um atraso, quantos mais se sucederiam?). O Inglês, apesar de tudo, parecia ser algo de diferente, novo e engraçado. O sorriso com que entrava e saía da sala de aula revelava o interesse, apesar de a atenção na aula não ser a melhor..."e com tantos colegas novos ao meu lado...é difícil."

Chateou-se um dia com o António, porque este o empurrara.

"Ele deu-me um empurrão e eu dei-lhe um pontapé, s'tor." "Vão os dois prá outra sala pensar no que fizeram."

Dois dias depois começou a chamada....e a aula correu normalmente....mas a normalidade tem as suas disparidades. Enquanto os outros iam lá fora brincar o jogo que o professor trouxera para as aulas...uma cadeira vazia denunciava o rapazito que fora castigado.
E à pergunta do professor "Então Filipe, não quiseste vir à aula?", o seu olhar turvara...e desviara-se para o chão... "Não posso. Portei-me mal...."

O segundo aluno foi expulso do Inglês. Era menos uma voz a chatear o professor...mas menos um sorriso no final de cada aula. Ai a porra do Inglês, com tanto Filipe por aí fora...

Thursday, November 24, 2005

VIDERE


Não queria olhar. Preferia estar absorto, noutro lugar, inerte para este mundo. Não me apetecia sentar naquele lugar (com tanto sítio que havia) e fiquei arrependido. Levantar-me seria sinal de fraqueza. Ficar, sinal da minha presença.

Indesejados os dois, os nossos corpos encontraram-se naquele lugar. Não me apetecia, entediava-me o presente, apenas pretendia terminar a refeição.

Era algo familiar aquele corpo, aquela cara, aquelas curvas e contornos. Mas não sabia situar. Calmamente almoçava e o olhar cruzava-se ocasionalmente...havia algo desconhecido naquele reconhecimento estranho. Um onde, um porquê, um quando. E a constante questão: "Onde é que eu já te vi?"

Levantou-se e seguiu o seu caminho. Minutos mais tarde seria a minha vez. Caminhos opostos seguimos, e não nos arrependemos. Não houve carta, telefone,sms ou mesmo, pasme-se, walki-talki ou pombo-correio. Seríamos para sempre dois desconhecidos, transeuntes de tantas vidas que este mundo conta.

Mais tarde, à noite, lembrei-me daquele olhar...foi no dia em que conheci alguém, um corpo. Pensei conhecer a figura diante de mim, mas votou-se ao silêncio e indiferença. O olhar mudara, o sorriso perdera o lugar e a voz o sentimento.

Indiferença. Como desprezo. Lembras-te? Eu recordo aquele dia e hora. Mas é melhor esquecer...enquanto há tempo.

Wednesday, November 23, 2005

Fado da vida....


10:12
Sentou-se. Cansada do mundo, clamava um minuto de pausa do lufa-lufa habitual (era engomadeira de dia, fadista à noite, no Bairro, e avó de sete petizes, cada um mais traquinas que o outro).
As pernas suplicavam um momento de repouso. Ninguém a incomodaria nem se importaria se ela se sentasse no banco, só por breves momentos e assim recuperasse o fôlego. (As compras da semana ainda iam a meio; faltava ir ao talho, à peixaria e farmácia.)
Lembrou-se do dia em que corria atrás do seus cinco filhos...tal como os seus netos, cada um pior que o outro. Amava-os a todos, apesar dos vasos, pratos, porcelanas e vidros partidos. Tudo era simples e honesto naquele tempo. Os netos, pensava, estão imersos numa apatia, entregues à televisão (já não se pode ver a novela em sossego...) ou àquilo que chamam de Playstation (mais estrangeirices...ao que chegámos hoje, senhores!)
Entre fôlegos, deixava escapar ocasionalmente um suspiro, aquele que libertava à noite, na cama, procurando trazer de novo à vida o dia em que casara e promessas fizera e tivera para toda uma vida. Os filhos cresceram, os netos apareceram em casa para o pequeno-almoço....e o prato vazio no jantar era o pão nosso de cada dia. Como a vida se alterara desde aquele juramento.
Contudo não se arrependera. O corpo que com ela dormia, partilhava risos e lágrimas, filhos e netos, e canções e refeições... e fados.
Era na música velada e triste, sozinha ou no restaurante, para os clientes e amigos de toda uma vida que libertava o sangue d'alma que lhe escorria pela voz. Sentia essa necessidade. Era o seu oxigénio. Cliché seria ficar em casa, a remendar meias, adormecer no sofá, a ver as novelas, ou perdida de sono, tentando completar as palavras cruzadas do jornal. (Ainda tenho que passar pela banca do Sr. Chico. Falta comprar o jornal de hoje.)
10:13
Suspirou.
Perdida nos afazeres não reparou no tempo que velozmente passava. Amanhã seria Domingo. Descanso merecido. (Mentira....o almoço por fazer, o marido que dorme a sesta à tarde quando temos que visitar o António e os miúdos. Mais o lanche ainda e regressar a casa para cozinhar o jantar - desta vez será só sopa, que não tenho vontade para mais nada - e depois passar a ferro as camisas do homem...descanso...isso era dantes, nos meus vinte anos, quando ia com a Josefa e Ilda à aldeia, comprar caramelos. E os balaricos das aldeias, no Verão...que saudades, que bons tempos.......................Que vida...)
...
10:14
O corpo pediu-lhe que fechasse os olhos e suspirasse só mais uma vez antes de regressar à rotina. A ambulância chegaria mais tarde para vir buscá-la, sem sopro. Afinal, na lufa-lufa do dia-a-dia, quem daria conta, quem se importaria? Era um corpo, era uma desconhecida. Mas escondia dentro dela, gravada no peito, o fado da vida.

Tuesday, November 22, 2005

Ele há dias.....

Um corpo visionei na paragem, na estação, na rua, no banco de jardim...era eu....eras tu, era a certeza da vida que passa por nós.

Ele há dias em que se julga Verão
maduro na hora do silêncio
da voz que insiste em mordê-lo.
Calou-se o barco das suas viagens
e na monotonia do relógio
o Chiado não tem encanto, nem vida.
Foi-se o tempo da chuva tão simplesmente
quanto tivesse sido rezada em vigília sem fé.
E a meia-idade chegou tal como a agenda previra…


in Corpo Ausente

Somn......




Há dias em que o espelho da alma não quer trabalhar. Há dias em que a inércia invade o corpo, para deixar, assim, o espírito "recarregar baterias". Há noites em que só o silêncio sabe contar o cansaço do mundo.

Há dias que tenho horas em atraso.

Sono, és bem-vindo na minha casa.

Monday, November 21, 2005

Sem P.l.a.n.o.


Mergulho na imensidão das palavras e nenhuma me traz a carga semântica que procuro hoje. Amanhã talvez futuro.

Por enquanto fico-me sem P.oder L.er A.lgo (de) N.ovo (e) O.rgânico.




(Tip: Sem Plano dos Cool Hipnoise, porque há ainda boa música em português)

............."And then there was light."

Respiro o oxigénio cibernético. Dou voz às cordas vocais binárias...e alimento o corpo global com mais umas linhas...letras na pedra lascada, a fogo, a ferro, a sopro.

Olho com sentido renovado o corpo que se apresenta...

"O teu olhar retraído lembrou-me
o mar. Azuis foram
as pérolas que apanhámos na
praia a que chamas destino.
E a onda escreveu o futuro,
levou-o consigo e partimos juntos."

in Corpo Ausente