Letters in Store

Tuesday, January 23, 2007

Amour amour



Ela tinha o seu próprio compasso. Recusava o ritmo do mundo ou os passos da multidão. Sabia-se diferente, já que a igualdade nos outros a apagava a si mesma.

Fingia querer o mesmo banal humano a cada dia, para se sentir mais próxima dele, mas dentro de si fingia, sabia do desejo insaciável de querer mais, sentir mais, ser mais do que este convencional humano. Buscava em tudo ao seu redor algo que lhe lembrasse do maior que há em si, mas ou era ilusão ou insastifatoriamente pouco para o muito que gardava dentro de si.

Na melancolia de um passeio procurava algo superior a si. Sentia no peito a burbulir de uma força anímica maior do que ela própria, um comando, um desejo, uma quimera...até àquele dia.

Jamais iria esquecer aquele passeio, aquele momento, aquela troca de olhares. Era bem jovem e ele olhava-a como se tivesse esperado por ela pacientemente. Com cautela avançou na sua direcção. Ele dirigiu-lhe a palavra, apresentou-se e ela corou e desviou o olhar para o chão. Timidamente retribuiu o gesto.

Após alguns momentos de troca de olhares e curtas palavras, ela ousou um toque. Hesitantemente dirigiu-se para ele e admirou-lhe a forma, o odor que emanava e olhar fixo e misteriosamente profundo que lhe lançava. Quando percebeu que ele se deixara tocar, ela julgara tudo perdido no seu peito, tal fora o seu temor.

Daquele momento gerou-se o universo, a verdade absoluta. A resposta para as suas dúvidas, para a imprecisão das sombras ao seu redor. A paz de espírito para a tempestade criativa no seu coração. Assim ele lhe mostrou tudo o que sabia e viu com enorme satisfaçao, e ela bebia daquele universo preenchendo, alargando o seu. E o ar encheu-se de risos, choros e sonhos e enebriada desta forma, deixou-se adormecer nos seus braços. E jamais esqueceria esta relação que de tão curta que fora, tanto lhe trouxera. E nunca mais o viu desde aquele dia.

Fora isto porque vivera, ela sentira. Aquele livro, aquele amante de mil páginas, fora para si o redentor para a sua sede insaciável e transformando a rotina em ritual, procura no papel uma lembrança daquele dia. O dia em que, inocentemente se criou o milagre da escrita.
***Dedico este blog a todos os que me apoiam nesta caminhada. Cat, Eclipse, thanks 4 everything.***

Monday, January 08, 2007

Alma

"Nao confies a alma a quem não a quer receber," ela pensou. "Será um inimigo terrível, daqueles que minam a alma com palavras de areia e sonhos de nevoeiro."

Conhece-lo bem, esse inimigo, esse silêncio que escuta à noite deitada na cama, antes de adormecer. O calafrio que percorre a espinha não esconde a sua presença e ela sabe-o bem. O temor é companhia e certeza da incerteza que invade o seu olhar expectante, ilusório, sereno.

Há muito que ela acolheu este destino, esta palavra cuspida do ventre de si mesma, qual filho pródigo. Não precisava de ver para acreditar na solidão. Sabia-se só e só ficara desde o dia em que decidira amar. Dera-lhe o coração irrelutantemente, sem pensar nos dias em que vive olhando aquele prato vazio à sua frente, do outro lado da mesa. Fechando os olhos imagina o idílio, o amante e marido que não tem. Vive deste modo a sua paixão pueril, dilacerante, intensa, quimérica. E verdade seria não fosse a metade do lençol frio a cada noite. Deseja na vida aquilo porque sempre imaginara: calar este carrasco nocturno, que a afaga a cada respiro e a toca com volúpia, e rindo para si, criar a vida que só em mente é deusa e senhora do seu futuro.

.....
Chegara tarde como sempre. O jantar espera-o no micro-ondas. À média luz de um candeeiro de cozinha jantava no silêncio da casa. Cheirava à outra mulher e mais uma vez disfarçaria com um duche rápido aquele odor de juventude. "Saberia ela? A roupa não esconde o que o corpo disfarça," concluiu.
Repetiu mais uma vez o ritual. Baptizando-se na água meditou na mulher que do outro lado da parede o esperava, adormecida. Lembrou vagamente os passeios, os olhares e sorrisos cúmplices dos tempos de namoro. Mas o carrasco deste amor lentamente marcara presença a cada ruga e cabelo branco, e os sorrisos cederam ante o peso do silêncio. Até que um corpo novo aparecera, fascinado por aquele olhar de meia-idade.
.....
Deitou-se naquela metade da cama fria. Nem se virou para vê-la sequer. E deixou-se adormecer.
Antes mesmo de sonhar lembrou-se de uma voz que cantava raiada em lágrimas. Fora naquele momento que soubera: era ela quem queria por companheira. Acordou sorrindo e quebrando um peso de anos, voltou-se na cama para de novo admirar a sua, ainda, mulher. Porém, aquela metade da cama estava vazia, à excepção de um sobrescrito na almofada.
Acendeu o candeeiro e abriu o envelope, revelando o bilhete:
"Quando se ama alguém tão profundamente sufoca-se o amor. Deixo por isso a cama respirar e solto a alma pela pressão aplicada."