Letters in Store

Sunday, August 12, 2007

Advérbios de Modo


Abriu a porta da nova casa de coração aberto, sob a penumbra. Seria a primeira noite em que dormiria na sua casa. Após meses de remodelações e mobilar do apartamento, tudo estava pronto, este seu pequeno reino, para o receber.


Fez o seu primeiro jantar, bastante frugal, dado o adiantado da hora a que chegava da casa dos pais, assinalando o dia em que acordara pela última vez como habitante da casa de outrém. Lembrou-se da última recomendação da sua mãe antes de sair de vez, com o cliché simbólico da entrega das chaves, algo melancolicamente tiradas do porta-chaves: "Não te esqueças de pôr o despertador ligado e de te levantares a horas. Não estaremos lá mais para te chamar. És o dono e senhor da tua casa, meu filho. Respeita-a e ela respeitar-te-á."


Vasculhou o guarda-roupa para ter uma ideia do que vestir no dia seguinte para o trabalho. Queria causar uma certa impressão como homem emancipado e desta forma receber crédito dos colegas, pequenos rasgos de egotismo para levantar o seu moral de algo que negava e escondia de si mesmo. Há pouco menos de um mês teria alguém para o censurar e apoiar, mas os compromissos da vida quotidiana estrangularam o que poderia ter sido um casamento ou divórcio antecipado. Mas essas suposiçoes deixá-las-ia para os sonhos, depósitos de tantas outras palavras em lodos de horizontes.


Deitou-se na cama, grande, simples e confortável, como sempre o desejara. Encostado à almofada, admirou solenemente o seu quarto e esboçou uma curva no lábio, surpresa de um objectivo alcançado mas estranhamente sabido por incompleto. Abriu o livro que hesitantemente se esforçava para ler, mas leu no pensamento que não o acabaria, na mesma monotonia em que outros tantos agora ficavam condenados às estantes, como ilusão de um intelectualismo e prosódia que sabia não ter.


Havia contudo um outro livro que o fascinava e compelia ultimamente. Sentia-se enfeitiçado e ao mesmo tempo aniquilado por ele. Expulsara-o da sua vida fazia anos, legando-o para uma velha caixa, mas agora, por entre o silêncio e a sombra, a sua voz ouvia-se claramente.


Relutantemente desenterrou-o do meio de outros tantos papéis e livros já gastos. Sentou-se na cama e abriu a capa, meio rasgada. Na primeira folha, a única com algo escrito, ensinava em letra pueril:

"Não te contentes com o vazio destas páginas para o teu coração. Preenche-o antes com o melhor que há em ti e tu sabe-o que há. Ass.: 'Eu' "


E fechando o livro, desligou a luz e deitou-se. E o lábio torcido transformou-se num sorriso. Distintamente.

Saturday, August 11, 2007

Letra morta





Subiu até ao ermo do monte para ver o horizonte. O sol que se punha apresentava-lha uma paisagem calma e apaziguadora.





Vivia cheia de dúvidas, receios e sonhos. Muitos sabia que não se realizariam, outros foram pura inocência e ainda uns poucos deles, puro engano e ilusão. Agora que se sentia ligada á natureza envolvente, considerava os amigos e família, em todas estas pequenas bençãos que o Universo, ou Deus, ou a Vida, ou todos com uma contribuição sui generis criaram para ela dar valor a quem é e àquilo que tem.


Sim, a vida corria-lhe bem: era amada. O namorado esperava-a lá em baixo, no carro, a ouvir a música que ela embora não gosta, suporta porque...gosta dele. Concessões de uma relação normal.


Queria mais. Queria pensar que ao descer deste ermo haveria de produzir-se nela uma transformação. Acreditava na bondade e sinceridade deste propósito. Cria fervorosamente na honestidade do valor que as palavras que gravara no seu peito seriam um lenitivo para outro propósito maior. Não sabia o dia de amanhã, apenas sabia que sofria do seu defeito maior: amava demais. Sentia o coração explodir de felicidade ou de dor por alguém ou por estes momentos de Paz que contemplava, perfeitos poemas isentos de palavras.

De facto, chegara a este ermo para se suicidar. Letras mortas nas pedras da perfeição. Acabaria com a dor de um amar tão intenso que inevitavelmente a estrangularia. Meditou no seu intento e voltou costas à perfeição. Preferiu a imperfeição dos dias ao lado de outros seres humanos, do que a companhia de um universo perfeito, o Poema original, como as pedras da colina que a aguardam e guardaram o seu nome.
Ainda hoje sussurram o seu nome...